As serventias extrajudiciais, popularmente conhecidas como cartórios, nas suas mais variadas especializações, desempenham serviço público essencial, garantindo a atribuição de publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos. Aos olhos do público que se utiliza de tais serviços, a atividade diária das serventias não difere muito da rotina de empresas, até mesmo porque cada Cartório é inscrito em CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) próprio. No entanto, de maneira aparentemente contraditória, e para a surpresa geral, os cartórios não são pessoas jurídicas. Não se equiparam a empresas ou mesmo ao Estado. Como explicar tal descompasso?
Por disposição expressa da Constituição (art. 236, caput), detalhada pela Lei nº 8.935/94 (art. 22, caput), os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. Por sua vez, o ingresso na atividade notarial e de registro depende de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos (art. 236, §3º, da Constituição). Quer isto dizer que as pessoas aprovadas em concurso público específico receberão do Estado a outorga de uma delegação que lhes possibilitará assumir a titularidade de um determinado Cartório na qualidade de agentes delegados, sendo por isso remunerados pelos emolumentos, isto é, pelo valor dos atos que praticarem enquanto notários ou registradores (escrituras públicas, reconhecimentos de firma, registro de imóveis, registro civil etc.).
Em outras palavras, se a função notarial ou registral é exercida em caráter privado pelo aprovado em concurso público, a administração e a gerência do Cartório incumbem à pessoa física do delegatário. Cabe a ele escolher o imóvel onde funcionará a Serventia, firmar contrato de locação, contratar os funcionários (escreventes e auxiliares) que lhe prestarão auxílio cotidiano e atribuir fé pública aos atos que praticar no exercício da função, sob pena de responsabilidade (civil ou criminal) pessoal. Todos os contratos (civis ou de trabalho) firmados em nome próprio, sendo a sua pessoa física considerada empregadora.
Consideradas essas peculiaridades, parece ainda mais confuso e obscuro o motivo pelo qual os cartórios (que não existem como pessoa jurídica) possuem CNPJ. Alguns esclarecimentos se fazem necessários.
O CNPJ tem por finalidade a identificação de determinadas entidades perante a Receita Federal do Brasil. Compreende um cadastro detalhado, de interesse não apenas do Fisco, contendo informações a respeito de sociedades empresárias, sociedades simples e até mesmo entidades despersonalizadas (como condomínios), identificando-as mediante número de 14 dígitos. Tal numeração, por sua vez, deverá estar visível ao público em notas fiscais, embalagens de produtos comercializados/ industrializados ou outros documentos. No caso dos cartórios, é a Instrução Normativa nº 1.863/2018, da Receita Federal do Brasil (art. 4º, IX), que estabelece a obrigatoriedade da inscrição dos serviços notariais e de registro no CNPJ, como se pessoas jurídicas fossem.
Ao mesmo tempo, contudo, a Receita Federal do Brasil também estabelece a obrigatoriedade da inscrição dos titulares de Cartório (a pessoa física) no Cadastro Específico do INSS (CEI), “ainda que a respectiva Serventia seja registrada no CNPJ” (Instrução Normativa RFB nº 971/2009, art. 19, II, “g”). O CEI, por sua vez, é um cadastro utilizado por pessoas físicas equiparadas por lei a empresas, de maneira que os empregados eventualmente contratados por pessoas matriculadas no CEI estarão obrigatoriamente vinculados a uma pessoa física.
Isso significa que a própria Receita Federal reconhece, em suas normas, a dubiedade envolvendo a estrutura da atividade notarial e registral. Em atividades econômicas comuns, ou se está lidando com empresas (pessoas jurídicas, inscritas no CNPJ) ou com pessoas físicas equiparadas a empresas (pessoas físicas, matriculadas no CEI). Por outro lado, o Cartório deve estar inscrito no CNPJ e, ao mesmo tempo, o seu titular deve estar matriculado no CEI.
Apesar de parecer complexo, a explicação para isso é simples. A regra geral é a de que a figura dos cartórios existe apenas no imaginário popular. No mundo jurídico, as serventias extrajudiciais não são dotadas de personalidade jurídica, isto é, não podem firmar contratos em nome próprio, demandar ou serem demandadas em juízo. Quem firma tais contratos e é responsável pelos atos notariais ou de registro é, exclusivamente, a pessoa física do Notário ou Registrador aprovado em concurso público e titular da Serventia. Não obstante, apesar dessa regra geral, os agentes delegados devem inscrever o Cartório no CNPJ como se pessoas jurídicas fossem, não para a prática de atos da vida civil, mas sim para uma finalidade meramente administrativa: o preenchimento da Declaração sobre Operações Imobiliárias (DOI).
A Declaração de Operações Imobiliárias (DOI) é um instrumento pelo qual os agentes delegados prestam informações periódicas, conforme disposições legais específicas, sobre operações imobiliárias realizadas por pessoas físicas e jurídicas, constantes de documentos que foram por eles lavrados, anotados, matriculados, registrados e averbados (Lei nº 10.426/2002). Desde que foi instaurado, em 1976 (Decreto-Lei nº 1.510/76), o preenchimento do DOI por parte dos notários e registradores passou a exigir uma inscrição específica da Serventia num cadastro capaz de lhe identificar – em 1976 a nomenclatura utilizada não era, ainda, CNPJ, mas sim CGC: Cadastro Geral de Contribuintes. Tal necessidade perdura até os dias atuais. Não há como preencher o DOI (obrigação imposta por lei) sem indicar o CNPJ do Cartório.
Conclui-se, portanto, que as serventias extrajudiciais estão ligadas indissoluvelmente à pessoa física do seu titular e, por isso, não têm personalidade jurídica. Entretanto, por uma finalidade meramente procedimental (preenchimento do DOI), a Receita Federal do Brasil exige que os cartórios estejam inscritos no CNPJ.
Links externos: http://www.notariado.org.br/blog/doc-eletronico/a-doi-e-os-certificados-digitais; https://receita.economia.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/doi-declaracao-sobre-operacoes-imobiliarias/orientacoes-gerais; https://andrebona.com.br/entenda-diferenca-entre-cei-e-cnpj/