A ABUSIVIDADE DO REGIMENTO INTERNO
EM CONDOMÍNIO EDILÍCIO
AO RESTRINGIR O DIREITO DE PROPRIEDADE DO CONDÔMINO
Mauro Fonseca de Macedo
Bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná
Advogado na Macedo & Guedes Advocacia
1 – INTRODUÇÃO
Com o advento da concentração da maior parte da população brasileira em cidades de médio e grande porte, surgiu a necessidade da verticalização das moradias, que restaram organizadas em condomínios edilícios, conforme o disposto na Lei nº 4.591 de 1964 e nos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil Brasileiro.
Com vistas a regulamentar os direitos e deveres dos condôminos, o conjunto de regras internas dos condomínios edilícios devem estar dispostas na “Convenção do Condomínio” e no “Regimento Interno”, de acordo com o estatuído pelos arts. 1.333 e 1.334, V do Código Civil Brasileiro.
Via de regra é a natureza das matérias abordadas que determina o que deve fazer parte da “Convenção do Condomínio” e o que deve constar no “Regimento Interno”, cabendo à primeira definir a estrutura geral do condomínio e os direitos básicos do condômino, enquanto o segundo tem como objetivo disciplinar a conduta interna de todos os que habitam, se utilizam ou trabalham para o condomínio.
Tais regras são de vital importância para o convívio harmonioso entre os condôminos, uma vez que delimitam os direitos e deveres de cada um em relação ao bem comum, evitando, com isso, intermináveis discussões sobre o modo de viver em condomínio.
Exatamente por conter normas de convívio social, a prática aconselha que o Regimento Interno seja elaborado pelos próprios moradores, tendo em vista que são eles os conhecedores das reais necessidades do seu condomínio edilício, haja vista que todos eles possuem as suas particularidades.
Ocorre que ao serem elaborados sem uma orientação profissional, muitos Regimentos Internos de condomínios edilícios acabam extrapolando as suas atribuições, passando a revelar verdadeiro abuso contra o direito de propriedade dos condôminos.
Neste sentido, o objeto deste estudo visa justamente definir se o Regimento Interno pode conter regras que limitem o direito de propriedade em relação às unidades autônomas, bem como até que ponto pode normatizar o direito dos condôminos em relação à utilização das áreas comuns do edifício.
A tarefa não é fácil, tendo em vista que a legislação vigente é bastante vaga, permitindo diferentes interpretações para o que se considera “uso regular do imóvel em condomínio” ou “uso abusivo do direito de propriedade”, fazendo com que constantemente tais questões acabem tendo que ser decididas pelos nossos Tribunais Superiores.
2 – CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO E REGIMENTO INTERNO
Em primeiro plano, importante estabelecer as diferenças entre a “Convenção de Condomínio” e o “Regimento Interno”, até mesmo porque a legislação não o faz de forma clara.
Muito embora os arts. 1.332 e 1.334 do Código Civil definam de forma razoavelmente clara o que deve conter na Convenção de Condomínio, falham ao não limitar as matérias que podem e devem ser objeto do Regimento Interno.
Segundo regra insculpida no art. 1.332 do Código Civil Brasileiro:
Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial:
I – a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns;
II – a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns;
III – o fim a que as unidades se destinam.
Já o art. 1.334, define que além das cláusulas referidas no art. 1.332, a Convenção do Condomínio também determinará:
I – a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio;
II – sua forma de administração;
III – a competência das assembleias, forma de sua convocação e quórum exigido para as deliberações;
IV – as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores;
V – o regimento interno.
O Art. 1.333 do Código Civil, determina que a convenção que constitui o condomínio edilício deve ser subscrita pelos titulares de, no mínimo, dois terços das frações, sendo que para ser oponível contra terceiros, a convenção do condomínio deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
Observe-se também que no momento da incorporação imobiliária, o incorporador obrigatoriamente deverá apresentar ao registrador a minuta da futura Convenção de Condomínio, conforme se encontra estabelecido na letra “j” do art. 32 da Lei nº 4.951 de 1964.
Obviamente que o objetivo de tal dispositivo legal é justamente garantir ao futuro comprador que não sejam alteradas as características e a finalidade das unidades autônomas que serão comercializadas no imóvel incorporado.
Por outro lado, o art. 1.332 do Código Civil apenas estabelece que a Convenção do Condomínio ditará as regras para elaboração do Regimento Interno, sem definir ou mesmo limitar quais tipos de normas são admissíveis no referido documento.
Neste sentido, a melhor prática nos mostra que compete à Convenção de Condomínio apenas estipular regras com vistas a cumprir os requisitos dos arts .1.332 e 1.334 do Código Civil, sendo que as demais normas de convivência dos condôminos devem ser estabelecidas no Regimento Interno.
Da mesma forma, não convém que as regras estipuladas da Convenção de Condomínio sejam repetidas no Regimento Interno. De qualquer modo, a jurisprudência já fixou entendimento no sentido de que havendo incompatibilidade ou contradição entre elas, deverão prevalecer as regras ditadas pela Convenção de Condomínio.
Questão importante a ser observada se refere ao quórum para aprovação e alteração dos estatutos condominiais. Enquanto a Convenção de Condomínio exige quórum mínimo de 2/3 das frações de solo, para que se aprove ou altere o Regimento Interno é necessária apenas a maioria simples dos votos dos presentes, em assembleia designada para esta finalidade.
Sempre bom asseverar que a Convenção de Condomínio pode definir quórum específico para aprovação e alteração do regimento interno. Caso nada mencione, fica valendo a regras geral da maioria simples.
Também por este motivo, não convém que meras normas de convivência interna dos condôminos sejam estipuladas na Convenção de Condomínio, pois em caso de necessidade de ajustes ou alterações das mesmas, a exigência de quórum qualificado para implementá-las pode se tornar um grande empecilho.
Observando a real necessidade de separar as atribuições concernentes aos estatutos do condomínio, pode-se dizer que a Convenção do Condomínio é o documento que estabelece a compropriedade, cabendo ao Regimento Interno ditar as regras de convivência entre os condôminos.
Na mesma esteira de entendimento, para que tenha validade contra terceiros, a Convenção de Condomínio deve ser averbada junto ao Registro de Imóveis, fazendo parte da matrícula-mãe do imóvel incorporado, ao passo que o Regimento Interno deve ser registrado em Cartório de Títulos e Documentos.
Em resumo, a Convenção de Condomínio deve cuidar dos aspectos institucionais e administrativos tais como: modo de rateio das despesas; definir atribuições e forma de remuneração do síndico e subsíndico; criação de Conselho Fiscal; definir a forma de administração do fundo de reserva; definir as sanções aplicáveis aos condôminos, entre outras.
Quanto ao Regimento interno, observa-se que deve conter as regras de convivência diária entre os condôminos, como forma a prevenir possíveis conflitos entre os moradores, tais como: regular a utilização das áreas comuns; estipular forma e horário para remoção de lixo; determinar dia e horário para a realização de mudanças e reformas; estabelecer regras para o trânsito de animais nas áreas comuns; regular a conduta interna dos condôminos e funcionários; estipular regras para o uso de quadra esportiva e salão de festas, etc.
Enfim, o conjunto de regras estabelecidas no Regimento Interno sempre terá como objetivo criar um ambiente seguro e harmônico entre os condôminos sem, contudo, interferir no direito de propriedade concernentes às unidades autônomas.
Exatamente aqui começa a grande discussão jurídica e, ao que nos parece, ainda não foi encontrada uma solução definitiva. Até que ponto o interesse coletivo do condomínio deve prevalecer em face do direito de propriedade de cada condômino? Quando uma regra estipulada no Regimento Interno pode ser considerada abusiva? O Regimento Interno pode estabelecer regras que limitem o direito de propriedade sobre as unidades autônomas?
3 – O DIREITO DE PROPRIEDADE VERSUS INTERESSE COLETIVO
Aparentemente o problema deveria ser de fácil solução, pois competiria ao Regimento Interno estabelecer as regras de utilização das áreas comuns dos condomínios edilícios, podendo os proprietários exercer o seu integral direito de propriedade em relação às suas unidades autônomas, tal como disposto no art. 1.335 do Código Civil, que estabelece o direito do condômino a “usar, fruir e livremente dispor de suas unidades”.
No entanto, na prática, não é o que se verifica, pois constantemente podemos observar um choque entre o direito de propriedade dos condôminos e o interesse coletivo do condomínio. A doutrina e a jurisprudência tendem pela predominância do interesse coletivo sobre o individual, mas é de vital importância definir qual o limite normativo dos estatutos condominiais.
Via de regra, o próprio direito de vizinhança bastaria para regulamentar as relações entre os condôminos, pelo menos no que se refere aos limites do exercício do direito de propriedade das unidades autônomas, cabendo ao regimento interno apenas regular a utilização das áreas comuns.
O art. 1.336 do Código Civil estabelece alguns dos deveres dos condôminos, tais como respeitar o sossego, a salubridade e a segurança dos seus pares, assim como não atentar contra os bons costumes. Ainda que tal regra configure um norte para a definição das regras do Regimento Interno dos condomínios edilícios, tais conceitos são bastante vagos.
Nesta toada, teríamos que partir para a missão inglória, que doutrina e a jurisprudência ainda não conseguiu resolver, que é definir quais situações representam o uso nocivo do direito de propriedade e quais situações revelariam atentado aos bons costumes.
A grande verdade é que a particularidade das relações entre condôminos faz a jurisprudência seguir em passos lentos, definindo para casos específicos, quais situações considera haver abuso do direito de propriedade e, no outro sentido, em quais situações os regimentos internos abusam do seu poder normatizador.
Ante a falta de parâmetros legais para determinar até que ponto o direito da coletividade deve preponderar sobre o direito individual, a doutrina e a jurisprudência têm se utilizado do bom e velho “bom senso” na tentativa de resolver problemas pontuais.
Caso típico é a questão da criação de animais domésticos dentro das unidades autônomas. Muitos condomínios edilícios possuem regras em seus estatutos que proíbem a permanência de animais domésticos, de qualquer porte, dentro das unidades individuais.
Por décadas estas questões tramitaram pelos nossos Tribunais, até que no ano de 2019 a 3ªTurma do STJ, ao julgar o REsp nº 1.783.076, definiu que (i) caso não haja norma regimental, o condômino pode criar animais domésticos em sua unidade individual, desde que não cause incômodo aos demais condôminos; (ii) caso a convenção condominial proíba a permanência de animais causadores de incômodos, a regra é válida e; (iii) caso a convenção condominial vede a criação de qualquer animal, a mesma será considerada abusiva, tendo em vista que muitos animais não representam qualquer risco ou incômodo para os demais condôminos.
Ao elaborar o seu voto, o Ministro Vilas Boas Cuevas, em nítida aplicação ao princípio do bom senso, concluiu que “o impedimento de criar animais em partes exclusivas se justifica na preservação da segurança, da higiene, da saúde e do sossego. Por isso, a restrição genérica contida em convenção condominial, sem fundamento legítimo, deve ser afastada para assegurar o direito do condômino, desde que sejam protegidos os interesses anteriormente explicitados”.
Por fim restou resolvido que o importante é a preservação do sossego, segurança, higiene e saúde dos demais condôminos, sendo certo que a regra impeditiva da criação de qualquer animal, restou considerada abusiva frente ao direito individual de propriedade.
Óbvio que se alguém resolver criar um tigre dentro do seu apartamento, independentemente de haver proibição específica no Regimento Interno, poderá ser contido no seu intento ante à flagrante perturbação do sossego e segurança dos demais condôminos.
Embora a aplicação do bom senso seja um excelente norteador para limitar a predominância do interesse coletivo sobre o individual, ainda assim observamos que se mostra insuficiente para resolver todas as contingências condominiais.
Outra questão que se encontra bem em voga é possibilidade de proibição de locação temporária das unidades autônomas através de aplicativos como Airbn e assemelhados, sob a alegação de que restaria configurado o desvio de finalidade da unidade autônoma, ante a caracterização do exercício da atividade comercial de hospedagem.
A questão encontrou ressonância com o voto proferido pelo Ministro Luis Felipe Salomão da 4ª Turma do STJ, ao julgar o REsp 1.819.075 manifestou o entendimento de que o “condomínio pode adotar medidas adequadas para manter regularmente o seu funcionamento – como o cadastramento de pessoas na portaria –, mas não pode impedir a atividade de locação pelos proprietários”.
No caso, o julgamento ainda não restou concluído em razão do pedido de vista do Ministro Raul Araújo, estando paralisado desse o ano de 2019.
Autores como Orlando Gomes defendem a Teoria da Pluralidade dos Direitos Limitados, no qual o condômino, por fazer parte de uma unidade maior, ou seja, a coletividade condominial, poderia ter o seu direito de propriedade limitado em razão da preponderância do interesse da coletividade sobre o individual.
Também nesta linha de pensamento segue o ilustre doutrinador Caio Mário da Silva Pereira ao definir que “sempre que houver um conflito entre o individual e o social, entre o direito do proprietário e a convivência da coletividade, deve-se obrigatoriamente julgar em proveito deste, mesmo que ocorra a privação do direito subjetivo de propriedade” (Instituições de Direito Civil. Volume IV, pág. 246 – Direitos Reais, 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017).
No entanto a aplicação da Teoria da Pluralidade dos Direitos Limitados também não encerra a questão, pois nem sempre o interesse coletivo é necessariamente justo ou até mesmo legal e, neste caso, não pode prevalecer sobre o individual.
Observe-se uma situação hipotética em que a maioria dos moradores de um condomínio edilício entenda que é vedado aos condôminos receber visitas depois das 22 horas. Ora, tal vedação seria considerada uma violação ao direito de propriedade garantido pelo próprio art. 1.336 do Código Civil e, neste caso o interesse coletivo não poderia se sobrepor ao interesse individual do condômino que pretendesse receber visitas a qualquer hora do dia.
Desta forma, observa-se que geralmente deve prevalecer o interesse da coletividade sobre o interesse individual, no entanto ainda resta examinar se as normas inscritas nos estatutos condominiais podem se sobrepor ao direito de propriedade das unidades autônomas e quais os limites para que isto aconteça.
Também necessário examinar se o Regimento Interno, por não demandar quórum qualificado para a sua aprovação e/ou alteração, pode ou não conter regras que limitem o direito de propriedade ou a utilização das unidades autônomas.
4 – OS LIMITES DO QUE PODE SER ESTIPULADO NO REGIMENTO INTERNO
Em que pese a autonomia dos condôminos para ditar as regras de convivência nos condomínios edilícios, o primeiro limite a ser imposto é o que se encontra disposto na Lei. Neste sentido, qualquer regra condominial, esteja ela disposta na Convenção de Condomínio ou no Regimento Interno, que pela sua essência entre em testilha com normas legais e/ou princípios constitucionais será considerada nula.
Desta forma, uma regra hipotética que só permita o ingresso de pessoas católicas no condomínio, será considerada nula, uma vez que contrária ao disposto no art. 5º, VIII, da Constituição Federal que menciona expressamente que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa.
Óbvio que neste caso a inconstitucionalidade da regra é flagrante, mas existem muitos casos em que a legalidade da regra condominial é duvidosa.
Questão mais complexa é verificar se a norma inserta no Regimento Interno atinge ou não a preservação da função social da propriedade, uma vez que tal princípio é abordado pela Constituição Federal em seu art. 5º, XXIII.
Primeiro ponto a ser observado é que a preservação da função social da propriedade não é entendida apenas como uma limitação ao direito de propriedade, como por exemplo a desapropriação por interesse público, mas também como a verificação da exploração mais eficiente possível do imóvel, visando o bem da sociedade.
Ora, com a escassez de imóveis nos grandes centros urbanos, a preservação da função social de um imóvel impõe que ele permaneça ocupado na maior parte do tempo possível. Nesta esteira de entendimento, podem ser consideradas abusivas as regras estipuladas no Regimento Interno que limitem o horário de funcionamento de um imóvel comercial, ou mesmo, que criem dificuldades para a sua locação.
Por outro lado, o princípio da função social também impõe a preservação do interesse da coletividade frente ao interesse individual, ainda que seja necessário o sacrifício de um direito individual.
No entanto, quando se fala em interesse da coletividade, não apenas estará sendo examinado o interesse coletivo dos condôminos, mas de interesse coletivo da sociedade como um todo.
Por exemplo, se uma regra do Regimento Interno do condomínio impede que seja explorado determinado ramo de atividade em um imóvel comercial, enquanto as leis municipais assim o permitem, podemos dizer que tal regra é abusiva, pois viola a função social do imóvel.
Observe-se que além do interesse coletivo dos condôminos, também está em jogo o interesse da sociedade como um todo, pois aquele estabelecimento cuja atividade restou vedada, atenderia não só aos condôminos, como também ao resto da comunidade local.
Neste sentido, ainda que a limitação do ramo da atividade de um imóvel comercial interesse à coletividade condominial, necessário observar se também atende aos anseios da sociedade como um todo. Esta é a grande dificuldade do julgador quando se depara com causas que demandam a verificação da abusividade de regras condominiais.
Neste sentido nos parece valiosa a lição de Rubens Carmo Elias Filho quando diz que “ao analisar uma disposição da convenção de condomínio ou do regimento interno, analise-se a razão da restrição, pois, ao averiguar o contexto econômico e social em que esta norma está inserida, é possível verificar se ela é válida ou não” (A Convenção de Condomínio e as Restrições aos Direitos dos Condôminos dela Decorrentes, pág. 109. São Paulo, 2012).
Observe-se que regras polêmicas como: a proibição da criação de animais domésticos nas unidades autônomas; proibição de locação temporária por aplicativos da internet; possibilidade de instalação de aparelhos de ar-condicionado (alteração de fachada); proibição do condômino inadimplente utilizar-se das áreas comuns do condomínio, entre outras, são questionadas há décadas nos tribunais pátrios, sem que a doutrina e a jurisprudência tenham chegado a um consenso.
Outro limite claro para o que pode ser estipulado do Regimento Interno dos Condomínios Edilícios é a própria Convenção do Condomínio. Ainda que a melhor técnica determine que a Convenção de Condomínio e o Regimento Interno tratem de temas diversos, sempre que houver contradição entre os estatutos condominiais, prevalecerá a regra inserta na Convenção do Condomínio.
Tal solução se dá pelo fato de que a Convenção de Condomínio, por necessitar de quórum qualificado para a sua aprovação e alteração, é um estatuto condominial hierarquicamente superior ao Regimento Interno, que depende apenas da maioria simples dos condôminos presentes na assembleia designada para esta finalidade.
Aliás, cabe à própria Convenção de Condomínio estabelecer o quórum mínimo para aprovação e alteração do Regimento Interno e, caso não haja estipulação específica, vale a regra geral da aprovação por maioria simples.
Outro limite importante para as regras ditadas pelo Regimento Interno é a de que jamais poderá impor uma alteração de finalidade das unidades autônomas, eis que isto é função exclusiva da Convenção de Condomínio.
Neste sentido, qualquer regra inserta no Regimento Interno do Condomínio, que de alguma maneira altere e/ou limite a finalidade das unidades autônomas, sempre será considerada abusiva.
Voltando ao exemplo anterior, podemos dizer que o Regimento Interno jamais poderá impor limitação ao horário de funcionamento e/ou impor restrição ao ramo de atividade à unidade autônoma, eis que estaria exorbitando da sua função ao impor uma limitação para a destinação do imóvel.
Ora a limitação ao ramo de atividade e/ou o horário de funcionamento de um imóvel comercial deve ser imposto pela legislação municipal e, talvez, pela Convenção do Condomínio, mas nunca pelo Regimento Interno, eis que sua aprovação não demanda quórum qualificado.
Observe-se que existe uma hierarquia entre as normas condominiais, assim como ocorre entre as normas legais, sendo certo que Convenção de Condomínio é a regra máxima no que tange ao regulamento das normas condominiais. Neste sentido, quando alguém adquire um imóvel em um condomínio edilício, o faz sabendo que deverá se submeter às regras ditadas pela convenção de condominial. Por isto mesmo, necessário o quórum qualificado de 2/3 dos condôminos para alguns tipos de alteração e de quórum de 100% para alteração da destinação das unidades do condomínio (art. 1.332, III do Código Civil Brasileiro).
Já o Regimento Interno, como serve apenas para regulamentar assuntos triviais do condomínio, tais como: regras de utilização de salão de festas; regras sobre o descarte de lixo doméstico; regras sobre horário de mudanças, etc., as alterações podem ser aprovadas pelo quórum de maioria simples dos condôminos presentes em assembleia convocada para esta finalidade.
Vamos imaginar por hipótese que um condomínio edilício misto (composto de unidades residenciais e comerciais), possua uma Convenção Condominial que nada fale sobre a limitação das atividades e horários de funcionamento dos imóveis comerciais.
Exatamente por não haver esta limitação, uma empresa acaba por adquirir uma das lojas comerciais para instalação de uma academia de ginástica, mas, posteriormente, seja elaborado e/ou alterado o Regimento Interno, que passa a conter regras para vedar este tipo de atividade ou limitar o seu horário de funcionamento, inviabilizando o negócio.
Por óbvio tal regra deverá ser considerada abusiva, pois ao impor limites ao direito de propriedade de uma unidade autônoma, acabou por limitar a destinação da unidade autônoma, o que somente poderia ocorrer com o quórum de 100% (unanimidade) dos condôminos, segundo disposto no art. 1.351 do Código Civil Brasileiro.
Por outro lado, caso seja criado um condomínio exclusivo para idosos, cuja Convenção Condominial vede a moradia permanente de pessoas com menos de 60 anos de idade, como de fato já existem alguns no Brasil, entende-se que tal norma não seria considerada abusiva, pois a destinação do imóvel foi regularmente definida no estatuto apropriado.
Desta forma, todos que pretenderem adquirir um imóvel no referido condomínio, saberão de antemão que ele se destina exclusivamente à moradia de idosos.
Da mesma forma, uma maioria de condôminos idosos, jamais poderia impor a alteração do Regimento Interno de um condomínio edilício, com o objetivo de proibir a permanência de pessoas com menos de 60 anos de idade, pois tal norma configuraria evidente abuso ao direito de propriedade dos demais condôminos, ainda que minoritários.
Neste sentido, observa-se que o Regimento Interno de um condomínio edilício jamais poderia impor severa limitação ao direito de propriedade das unidades autônomas, devendo tal estatuto apenas regulamentar a utilização das áreas comuns do condomínio.
5 – CONCLUSÃO
Como a legislação é inespecífica quanto às matérias que podem ou não serem abordadas pelos Regimentos Internos dos condomínios edilícios, a constatação da abusividade se torna uma tarefa bastante complicada para os nossos julgadores.
As normas concernentes ao direito de propriedade e ao direito de vizinhança não são suficientes para regulamentar a vida em condomínio, daí a necessidade da existência de normas internas que visem o convívio harmônico entre os condôminos, que devem ser definidas da maneira mais democrática possível.
Ocorre que a vida em condomínio revela conflitos entre interesses individuais e coletivos, que nem sempre são de fácil solução.
Inicialmente porque o nível de sensibilidade entre as pessoas é variável, daí o motivo pelo qual alguns se incomodam com o mínimo barulho provocado pelos demais condôminos enquanto outros, por vezes, até gostam para acalmar algum sentimento de solidão.
Depois porque algumas pessoas, pelo simples fato de estar residindo em condomínio, se sentem no direito de reclamar de tudo, de todos e a qualquer momento, talvez como forma a compensar algum sentimento de frustração que somente os psicólogos poderiam explicar.
Não raro observamos reclamações extremadas quanto ao latido do cachorro do condômino que está localizado 10 andares acima, mas nenhuma reclamação quanto ao latido do cachorro que vive na casa ao lado do condomínio, o que revela o desejo incontrolável de alguns condôminos querer interferir na esfera jurídica dos seus pares, simplesmente porque eles acham que podem.
É normalmente deste tipo de sentimento, aliado à ignorância jurídica, que surgem verdadeiras “aberrações normativas” nos Regimentos Internos dos condomínios edilícios, normalmente em afronta ao direito de propriedade das unidades autônomas.
Também observamos que embora muitas regras ditadas pelo Regimento Interno sejam consideradas flagrantemente ilegais, algumas delas ensejam uma análise mais acurada para verificar a ocorrência de eventual abusividade.
Nestas situações deve o julgador analisar inicialmente se existe algum óbice legal para a norma, bem como verificar se existe alguma contradição com a Convenção de Condomínio. Depois deve contrapor a referida regra em face aos limites da função social da propriedade, ao princípio da boa-fé objetiva e ao bom senso, para que possa analisar o seu contexto social e econômico. Ao final deve levar em consideração que o objetivo do Regimento Interno é de pacificação entre os condôminos, não havendo qualquer sentido em uma regra que prejudique o direito individual de um condômino sem que em nada beneficie aos demais.
Pode-se dizer também que ao fazer prevalecer o interesse da coletividade sobre o individual, deve também levar em conta que o interesse da sociedade deve prevalecer face ao interesse coletivo condominial.
Igualmente, podemos dizer que o Regimento Interno não deve ditar regras que limitem o direito de propriedade das unidades autônomas, sejam elas residenciais ou comerciais, eis que não é o estatuto adequado para esta finalidade.
Enfim, é somente com uma análise aprofundada de todos os elementos anteriormente explanados que teremos condição de vislumbrar ou não a abusividade de uma norma inserida do Regimento Interno de um condomínio edilício.